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in Hachetetepé. Revista científica de educación y comunicación
O CUIDADO PELO NARRAR: OFÍCIO DOCENTE NA EDUCAÇÃO BÁSICABRASILEIRA NA PANDEMIA DE COVID-19
Resumo
Este artigo apresenta um recorte da pesquisa “Narrativas do trabalho docente na pandemia de Covid-19: pela memória do ofício, práticas de cuidado na educação” desenvolvida junto a professoras e professores da Educação Básica da rede pública brasileira. Analisa-se a experiência do trabalho docente durante a pandemia de Covid-19, acessada através das narrativas de professores e professoras sob o ponto de vista clínico do trabalho, ou seja, na articulação subjetividade, saúde e trabalho. A pesquisa, entendida como pesquisa-intervenção vale-se de uma plataforma online onde professores e professoras participantes postam e interagem com narrativas sobre o trabalho docente na pandemia. Também, são realizadas rodas de conversa entre os participantes da pesquisa através de plataformas de reunião online. Encontramos o ofício docente sob forte abalo - em grande esforço para não sucumbir diante dos desafios colocados pela pandemia para a realidade brasileira - e uma sala de aula em movimento de reterritorialização a partir dos encontros tecnológicos que o confinamento demandou. O processo de produção de narrativas constitui ferramenta para tecer uma dimensão coletiva da narratividade, compondo assim estratégia de cuidado do ofício docente, bem como das pessoas que o exercem.
Texto completo
1. INTRODUÇÃO
A pandemia de Covid-19, declarada pelaOrganização Mundial de Saúde em março de 2020, além de configurar uma atrozcrise sanitária, vem desenhando alterações políticas, sociais e econômicassignificativas que têm implicado em grandes modificações nos processos de trabalho.Ao mesmo tempo em que uma série de pessoas ficou desempregada e/ou migrou parao chamado trabalho "uberizado", mediadas por grandes plataformas,outras tantas passaram a realizar trabalho remoto o que provocou modificaçõessem precedentes nas estratégias de determinados ofícios. Neste artigo abordamoso ofício docente na Educação Básica Pública1 brasileira desde oponto de vista dos impactos da pandemia.
Gatti (2020) aponta que o enfrentamento da crise sanitária, em seus múltiplos aspectos, não contou com efetiva coordenação por parte do governo federal o que gerou uma diversidade de modos de enfrentamento da situação nos diferentes estados e municípios que compõem o país. A autora destaca essa situação como agravante tanto para a situação social quanto para a educacional e apresenta dados do Anuário Brasileiro da Educação Básica de 2019, enfatizando que este nível de ensino possui 48 milhões de estudantes, 81% deles nas escolas públicas. Levando em consideração as dificuldades que houve para que esses estudantes das escolas públicas pudessem acessar recursos tecnológicos, Gatti afirma: “Não há evidências de boas soluções nessa emergência para a ampla população de crianças vinculadas às escolas públicas” (Gatti, 2020, p. 32).
Ferreira et al. (2021) alertam para o alto índice de estudantes sem condições de acesso a recursos tecnológicos, evidenciando a desigualdade social brasileira agravada pela pandemia. Para elas, os 66,2% de estudantes brasileiros que não têm acesso aos recursos para o ensino remoto, evidenciam a restrição ao direito à educação ao mesmo tempo em que precariza, ainda mais, o trabalho docente: “Na tentativa de atingir aos mais de 60% sem acesso aos recursos tecnológicos exigem dos professores a reconfiguração de seus planejamentos e suas atividades pedagógicas em diferentes formatos: impressas, via áudios, imagens, orientações por telefones, rádios, entre outros”. (Ferreira et al., 2021, p. 330).
Assim, muitas são as dificuldades experimentadas no campo da educação nesses tempos pandêmicos, dentre as quais destacamos a inexistência de recursos tecnológicos viáveis entre docentes e/ou discentes para as exigências do momento, alto índices de evasão escolar, falta de preparo para o emprego das tecnologias digitais por parte de docentes, mas, sobretudo, a perplexidade diante de um trabalho que ora se exerce diferentemente do habitual e para o qual ainda não são suficientemente dominados os signos necessários para conduzir a tarefa e para avaliar os seus efeitos. Soma-se a isso, o fato de que a necessidade do Trabalho Remoto durante a Pandemia parece encontrar sustentação em um plano discursivo neoliberal que visa normalizar tal modalidade de trabalho no Pós-Pandemia com base no argumento da redução de custos mas cujos efeitos, do ponto de vista da fragilização das práticas educativas tecidas no coletivo, são expressivas.
Tal situação adensa a problemática existencial vivida - por professoras, professores e estudantes neste momento de pandemia - e já indica que estamos a viver uma intensa modificação nos processos pedagógicos cujas características necessitam ser pesquisadas, bem como seus efeitos éticos, políticos e estéticos. Por efeitos éticos, políticos e estéticos referimo-nos aos contornos do agir que serão desenhados por parte de trabalhadoras e trabalhadores da educação, aos processos de coletivização e/ou individualização que serão produzidos, bem como ao estatuto dos modos de vida que serão criados pela esfera da experiência vivida por estudantes, professoras e professores a partir da pandemia. Isto porque, em tempos de alta indeterminação como o que vivemos, a necessidade de confiança se impõe. Confiança que diz dos modos como gerimos a vida coletiva de maneira que não nos resta dúvidas de que o momento pede desenhos de pesquisa que sejam capazes de acompanhar o traçado dos modos de relação estabelecidos no trabalho docente em tempos de pandemia. Trata-se de analisar a processualidade da experiência do trabalho docente que ora se modifica de modo inconteste, gerando efeitos diretos na subjetividade e na saúde de docentes e discentes com consequências importantes no processo formativo que constitui na razão de ser deste ofício.
As linhas de problematização aqui tecidas situam-se no campo das Clínicas do Trabalho (Lhuilier, 2006) de maneira que nos interessa explorar as conexões entre trabalho, subjetividade e saúde neste contexto pandêmico entendendo que essa tríade articula-se por entre a experiência cotidiana, no dia-a-dia dos processos de trabalho nas escolas presenciais ou virtuais, como agora se desenham na crise sanitária.
2.CLÍNICASDO TRABALHO, OFÍCIO E NARRATIVIDADE
O campo das Clínicas do Trabalho reúne uma diversidade de abordagens conceituais e metodológicas que objetivam a relação entre trabalho, saúde, sofrimento e adoecimento, por meio do enfoque de situações laborais (Lhuilier 2006). Apresentando uma diversidade epistemológica, teórica e metodológica, o objeto comum das abordagens clínicas do trabalho é a situação do trabalho. Trata-se de analisar os modos de trabalhar que se ligam às atividades produtivas e que enlaçam trabalho, subjetividade e saúde, assumindo um caráter político de compromisso com a transformação das condições e da organização do trabalho pelo protagonismo dos trabalhadores e trabalhadoras.
Neste escopo, situa-se a abordagem da Clínica da Atividade, proposta por Yves Clot e colaboradores, a partir das influências de Alain Wisner, Vigotsky, Louis Le Guillant e Ivar Oddone. Da ergonomia de Wisner, Clot (2010) exalta a importância da ação de transformação e de intervenção empreendida pelos trabalhadores e trabalhadoras no que tange ao tratamento de consequências relativas às condições precárias de trabalho. Isso porque, no trabalho, não se faz apenas o que os especialistas designam como a “resolução de problemas”: na realidade cotidiana, em vez de se limitarem a resolver o problema, os trabalhadores precisam construí-lo (Clot, 2010).
De Vigotsky, Clot (2010) opera com a concepção de que o desenvolvimento do trabalho e dos trabalhadores e trabalhadoras só pode ser objeto de análise se ele for seu método, um método que, para os sujeitos, seja o meio de descobrir suas capacidades ao se avaliarem diante do que fazem. É concebido não para saber o que são, mas para experimentar com eles o que podem vir a ser.
Já de Louis Le Guillant interessa a concepção de que não é exatamente a condição social que é patogênica em si, mas o que “não podemos fazer” em relação a ela, é a impossibilidade de transformar a experiência vivida em forma de viver outra experiência. De Ivar Oddone, Clot (2010) inspira-se em sua busca por criar os meios de apoiar aos coletivos de trabalho em sua tentativa de manter e, em seguida, de ampliar seu raio de ação, preocupação essa que o levou à proposição das chamadas Comunidades Científicas Ampliadas. Tais Comunidades se deslocam do simples diagnóstico para a invenção de um quadro e de um dispositivo pelos quais seja possível começar a pensar coletivamente o trabalho para reorganizá-lo. Para o médico italiano, a experiência operária, além de ser reconhecida, precisaria ser transformada.
É a partir do conceito de trabalho como atividade que a Clínica da Atividade opera, de uma dimensão situada na distância entre Trabalho Prescrito e Trabalho Real, a qual implica, ainda, o enfrentamento do Real do Trabalho. Trata-se de uma esfera que envolve tudo o que se pensa em fazer e não se faz, tudo que se tem que fazer para, inclusive, não agir. Para Clot (2010), a atividade é, na realização efetiva da tarefa, por ela, mas, também por vezes, contra ela; produção de um meio de objetos materiais, simbólicos e de relações humanas ou, mais exatamente, de recriação de um meio de vida. A atividade está, então, a favor do desenvolvimento do trabalho, implicando a possibilidade de desenvolvê-lo por seus objetos, por seus instrumentos, por seus destinatários, e afetando a organização do trabalho.
O conceito de atividade, para Clot (2010), se liga, também, à ideia de conatus em Spinoza, de acordo com a qual estar em atividade vincula o dinamismo da vida à inteligência e o existir ao agir; é agindo que se preserva o ser que se transforma. Deriva daí a estratégia clínica proposta por Yves Clot: atuar a favor da expansão do poder de agir de trabalhadores e trabalhadoras, o que requer a operação por uma ética dos encontros, já que há, sempre, no trabalho, uma iniciativa dos trabalhadores e trabalhadoras que instaura uma relação, no mínimo, modificadora da norma: a ação passa pelo julgamento e pela recriação de novos objetivos para além dos contidos na prescrição.
A base do conceito de saúde em Clínica da Atividade situa-se, ainda, em Georges Canguilhem (2001), para quem a vida é atividade de oposição à inércia e à indiferença. Toma-se a saúde como enfrentamento àquilo que Canguilhem (2001) entende como sendo as infidelidades do meio, as variabilidades que configuram uma espécie de ‘vazio das normas’, conforme afirma Schwartz (2011), as quais são reenviadas aos trabalhadores e trabalhadoras para serem geridas. Também segundo o autor, por esses ‘vazios das normas’, engajam-se reconfigurações de maneiras de fazer, dos laços coletivos mais ou menos intensos, das aprendizagens, das redes de transmissão de saber fazer, dos valores do uso de si, da saúde no trabalho e, finalmente, reinterrogam – construindo ou destruindo – o que significa viver junto.
Para Yves Clot (2013), o trabalho é oportunidade de construirmos o esboço de um mundo mais ou menos comum - nisso que podemos dizer que o trabalho é investido enquanto ofício, dimensão e fazer que precisa ser cuidado para possibilitar o cuidado de quem trabalha. Pelos modos como cultivamos o trabalho em nós, no endereçamento de nossas ações aos nossos pares e àqueles com quem e para quem trabalhamos, por entre prescrições e estilizações, o ofício constitui-se como zona coletiva em permanente reinvenção: variabilidade quase anárquica que jamais pode ser capturada por inteiro.
Haveria, enfim, uma habilidade do ofício (Clot, 2013), operada por um mecanismo coletivo dependente dos próprios trabalhadores sendo por tais mecanismos que subjetividades são produzidas, assim como processos de saúde são experimentados. Vivendo dramáticas dos usos de si (Schwartz, 2007), professoras e professores fazem uma espécie de corpo coletivo, corpo-si nas palavras do autor, que catalisa planos de história pessoal, coletiva e por-vir envolvendo sensações e memória “sem que se pense realmente” (Schwartz, 2007, p.211). Espécie de corpo que longe de ser uma unidade psicofísica, acessa uma zona de forças que implica em micropercepções e infra-sentidos por onde os trabalhadores entram em conexão com um plano nada interior e privativo e sim, exterior, da ordem do comum (Amador e Fonseca, 2011).
A subjetividade estando vinculada aos atos do trabalho implica sempre, em alguma medida, transformação, implica, também, transformação de si, meio para viver outras experiências. Subjetividade e potência de ação estão imbricadas para Clot (1985) que investindo o conceito de atividade com a noção de conatus em Spinoza, sustenta-o no esforço de preservação do ser que vincula o dinamismo da vida à inteligência, à produtividade do ato, à realização de si. Poder de agir como expansão dos modos de fazer o trabalho e de existir, esta é a proposta da abordagem de Clot (2006; 2010), para quem a atividade é, na realização efetiva da tarefa – por ela, mas também, por vezes, contra ela -, recriação de meios para viver. Para o autor, a atividade implica o que se faz, o que se pensou em fazer, o que se fez sem querer fazer e implica, ainda, em “sonhar” em uma dinâmica cuja saúde experimentada pelo trabalho está diretamente relacionada à expansão da potência de ação no trabalho. Tanto mais sofrimento e adoecimento se experimenta, quanto mais a atividade for impedida.
A atividade, então, é o meio pelo qual se faz a história de um ofício, o qual decorre do trânsito por entre instâncias institucionalizadas pelas prescrições organizacionais, bem como pelas prescrições do gênero profissional, este patrimônio para o agir gerado na atividade, e, ainda, por movimentos de estilização (Clot, 2010), esses ligados aos movimentos de singularização no trabalho.
Clot (2013) designa como ofício a dimensão de uma história coletiva de trabalho, composta por memórias, resistências, impedimentos e criações, que se transforma no tempo pelo fazer dos trabalhadores que compõem esse ofício. Nesse sentido, cuidar do trabalho implica cuidar de sua história e da sua memória, produzindo um lastro de possibilidades e de recursos que se atualizam em práticas, como combustível de criação, como território de produção. Território esse que é sempre nômade, pois diz da errância das normas que foram e que serão produzidas por entre rastros da história. Assim, cuidar dessa história-memória como campo de possíveis tem como efeito um cuidado do trabalhador.
O trabalho compõe histórias e histórias compõem as possibilidades e os modos de trabalhar. Ocupar-se das narrativas que tratam de um trabalho e daqueles que o operam é ocupar-se das possibilidades de pensamento e invenção nesse trabalho, é tratar dos limites impostos e das soluções inventadas, é criar um campo efetivo e afectivo através do qual tocar e acompanhar a matéria e a trama nas quais um ofício é tecido. Narrar uma história é, assim como trabalhar, um exercício de criação de comunidade pela produção de mundos.
Tomamos a narrativa, então, como uma operação, um processo criativo que enlaça um passado com modos de dizê-lo, de dentro de uma configuração de presente, ao mesmo tempo em que oferece essa criação a uma comunidade e se faz uma comunidade ao enunciar. E nesse ser dito, queremos ressaltar que revivesse esse passado, não como mero retorno ao registro dele, mas como vivificação daquilo que aconteceu e segue influindo na construção do presente. Ou seja, nos interessa uma abordagem narrativa que emerge de uma experiência coletiva e se reinscreve nesse coletivo para lhe proporcionar condições de existência. Tal reinscrição a partir daquilo que um coletivo pode buscar e contar de sua história não implica em um movimento de conservadorismo, ao contrário, se trata de poder transmitir as rupturas sem desmantelar a história. É mais um exercício de continuidade que de manutenção. A partir de sua leitura de Benjamin, Gagnebin (2006) nos mostra que a palavra confere uma certa materialidade ao passado. Esse passado não está sendo representado em si, mas sendo articulado, presentificado e transmitido, compartilhado, em um movimento que ao mesmo tempo cria condições para a continuidade. Assim, quando tomamos a narrativa docente em uma perspectiva clínica da atividade, estamos propondo um espaço e principalmente uma temporalidade onde se reconhece o ofício inscrito em uma duração, onde uma comunidade pode narrar e acompanhar seus movimentos de diferenciação e se lançar em figurações para um futuro em que se possa, entendemos a partir de Donna Haraway (2016), criar respostas-hábeis a problemas que permanecerão conosco.
3.PELAS NARRATIVAS, UM PERCURSO METODOLÓGICO NO ÂMBITO DO TRABALHO DOCENTE
A partir do marco teórico que sustenta esse trabalho, sustentando a confiança na ética dos encontros, nos agenciamentos coletivos, construímos um modo de operacionalizar a pesquisa criando possibilidades de encontro - dos encontros possíveis em tempos de pandemia, através de plataformas online. Professoras e professores podem narrar suas histórias de docência durante a pandemia em uma plataforma (acessável a partir do link: https://www.ufrgs.br/memoriadooficiodocentenapandemia) onde as narrativas são postadas, permitindo a leitura e interação com postagens de outros docentes, bem como da equipe pesquisadora. Também, são realizadas rodas de conversa através de plataforma de vieoconferência Google Meet entre pesquisadoras, pesquisadores e docentes participantes da pesquisa, onde circulam histórias a respeito de como têm realizado seu trabalho nas condições pandêmicas, de angústias, sonhos e expectativas em relação ao trabalho docente durante e pós-pandemia.
O projeto é desenvolvido por três Universidades Públicas Brasileiras vinculadas aos estados do Rio Grande do Sul, Espírito Santo e Rio de Janeiro. Até o momento2 a Plataforma da Pesquisa recebeu 23 histórias, e foi visitada 2655 vezes. Além desse modo de interação assíncrono, também foram formados três grupos de participantes para as Rodas de Conversa. Cada grupo realizou em torno de 5 encontros com duração de uma hora e 30 minutos cada, envolvendo 15 professoras e professores. O material gerado na Plataforma para postagem de narrativas, bem como aquele produzido nas Rodas de Conversa está, neste momento, passando por um processo de análise por parte da equipe pesquisadora que realizará encontros sistemáticos de restituição (César et al., 2016) junto às pessoas participantes da pesquisa, como modo de relançar ao diálogo o processo analítico gerado pela pesquisa. Destacamos que a perspectiva de “pesquisar com” pela qual as pessoas participantes da pesquisa possuem papel ativo no processo analítico em todo o percurso, desde o momento em que se gera interação pela Plataforma de Narrativas, bem como nas situações das Rodas de Conversa
4.PANDEMIA E ABALO NAS ESTRATÉGIAS DE OFÍCIO DOCENTE
As atividades escolares presenciais, suspensas assim que foi decretada a pandemia de COVID-19, deram lugar às mais diversas experimentações de ensino remoto operado de modo emergencial, colocando o ofício sob forte abalo, ao experimentar modos de trabalhar dos quais o ofício docente não trazia qualquer registro da experiência. O exercício normativo ao qual os trabalhadores são convocados diante das infidelidades do meio passou a operar com lastro na incerteza, na aposta, na aprendizagem de ferramentas, no manejo dos recursos tecnológicos disponíveis. Os docentes precisam, então, para lidar com o vazio de normas, recorrer à história do ofício para enriquecê-la com novas possibilidades de repertório lá onde não encontram ainda modos por onde operar.
Em março de 2020, professores e professoras deixam as suas conhecidas salas de aula com suas turmas uniformemente dispostas, seus conteúdos e todo um aparato de “modos de fazer” e todo um “jeitinho” - como menciona a professora Girassol3, participante da pesquisa - para a construção de um ensinar e aprender que pode passar ou não por aparatos tecnológicos digitais, mas que buscou forjar uma tecnologia da presença. Com a impossibilidade de encontro no recinto escolar, condições econômicas vulneráveis de uma importante parcela dos estudantes ficaram evidenciadas como nunca antes, bem como foram agravadas, dado o contexto da pandemia e seu manejo governamental.
Enquanto alguns professores tiveram de lidar com suas dificuldades para aprender a utilizar salas de webconferência, manejar gravação e edição de vídeos ou outros impedimentos ao operar com tecnologias de informação e comunicação, uma grande parte dos professores das escolas públicas precisaram, ainda, se restringir a produzir materiais que pudessem ser entregues em mãos, na tradicional mídia em formato físico (papel) , aos pais ou responsáveis que periodicamente foram à escola buscar o material disponibilizado. Estratégias se fizeram diferentes por turma, por aluno, sendo que inúmeras vezes um mesmo professor necessitou ativar múltiplas estratégias de acesso ao estudante, utilizando recursos analógicos e digitais. Constantemente as estratégias ruíram e deram lugar a incertezas e improvisos. Estratégias que se ancoram no já existente e sustentam novas invenções, em um jogo que não nos permite dicotomizar o que vinha antes com o que acontecia agora. As normas prévias, talvez caducas para a situação em questão, balizavam os possíveis para os quais o ofício podia ainda crescer e vencer os desafios impostos pela situação atual. Isso, quando o conteúdo se fizesse suficientemente modulável e plástico para se reconstruir.
Uma professora, durante uma das rodas de conversa, menciona a rotina como importante ferramenta docente, uma rotina da ordem do planejamento, da construção de uma previsibilidade mas também de rigidez nas práticas e, até o momento da pandemia, isso foi algo que constituía o “ser professor”, constituía um ethos.
O cenários das incertezas que passaram a vigorar em relação a quanto tempo duraria o confinamento, quem teria acesso à aula, que tipo de material atenderia o aluno real, a conexão se manteria estável durante a aula, quando haveria retorno, como seria um retorno híbrido? Professores e professoras se depararam com sucessivos fracassos em seu planejamento a ponto do inesperado ser mais presente do que o planejado.
Até mesmo a disposição dos alunos em sala de aula foi mencionada por uma professora como algo do qual ela foi desapossada. Percebemos que utilizar estratégias para que o espaço e os acontecimentos pudessem ser mais ou menos controlados constituíam o ferramental do professor de tal modo que é possível perceber um baralhamento entre as ferramentas e uma ideia de essência do ofício. Ou seja, a perda de algumas ferramentas que se constituíam centrais no fazer docente foram vividas, em alguns momentos de maior abalo, como a perda do próprio ofício.
Esse processo de intensa perda de referências de atuação bem comoativação da gestão de um processo normativo de grande porte trouxe implicaçõessubjetivas e cognitivas que se enlaçam e agem sobre esse processo. Entreprecariedades, impossibilidades de acesso, aprendizagens de novas ferramentas,indignação com condições de trabalho inesperadas e sem suporte, professores eprofessoras experimentam um estado de deriva que é expressa entre afirmações doser professora, esforços de “se manter professora” e questionamentos de “afinal, o que faz de uma professora, professora?” (participante Profe deCoragem5). Essa suposta perda/busca de uma identidade demarcaum desapossamento de um inventário coletivo de estratégias, de um saber-fazer esaber-avaliar um trabalho bem feito. Ser professora não está relacionado a umcargo que se ocupa mas a uma certa posse sobre ferramentas de ação para umfazer que se transfigura em aprendizagem discente - seja esta de conteúdosespecíficos ou experiências para a vida.
Assim, por entre a realidade complexa da escola brasileira e os grandes abalos do ofício, se atualizou na pandemia de Covid-19 um hibridismo metodológico e composições de parcerias inesperadas para que o ofício deslizasse por sobre os impedimentos das mais diversas ordens que compuseram com os impedimentos sanitários.
Quando, em uma das rodas de conversa proposta pela pesquisa, uma professora diz que “nosso esforço de professor foi pra se manter professor” ela evoca uma angústia diante de uma série de referências que compunham seu ofício até então: um território escolar, uma sala de aula com uma determinada arquitetura e organização, um conjunto de materiais didáticos conhecidos, um conjunto de conteúdos programados, um calendário, uma temporalidade, um conjunto de problemas aos quais os estudantes estão sujeitos e outro que elas, professoras, enfrentam. Apartado de praticamente todos os elementos desse meio conhecido, professores e professoras se vêem lançados em um novo território, uma espécie de nova vizinhança que ainda não se sabe muito bem como funciona e com quem se pode contar, até que uma nova territorialidade começa a se esboçar: uma nova máquina que precisa ser comprada, uma pessoa da família que leva e busca materiais na escola, um mecanismo de busca que você pode lançar as mais diversas perguntas sobre como resolver um problema (e aquela página se tornar o vizinho com quem você mais pode contar); fios, cabos, telas, filhos (elementos que invadem a realidade de trabalho tanto em movimentos de intrusão como de sustentação do mesmo). São diversos os novos parentescos pelos quais o professor fez meio, apesar da precariedade e, principalmente, a desigualdade de condições entre os diferentes alunos, com a qual a escola pública brasileira se confrontou.
Uma escola híbrida, em composição com as máquinas, com seu território. A feitura de um território virtual entre professores, estudantes, famílias, suas máquinas, seus espaços, seus problemas, encontrou imensas barreiras nas condições socioeconômicas das famílias. Professores acionaram uma multiplicidade de estratégias para atender diferentes grupos, que tinham diferentes possibilidades de acesso a equipamentos e rede. Em todas as estratégias houve um esforço de criar presença, manter vínculo e, entre tudo isso, “manter-se” professora/professor.
Destacou-se o fato de que a experiência da pesquisa possibilitou acessar uma dimensão processual da experiência de ser docente reconhecendo-se num intenso processo de modificação das estratégias de ofício e de si mesmas de maneira que o “tornar-se docente” na e pela pandemia abriu para a instauração de análises inusitadas.
5.ALGUMAS CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES: NARRAR A EXPERIÊNCIADA DOCÊNCIA NA PANDEMIA DE COVID-19 E A AMPLIAÇÃO DO PODER DE AGIR NO E PELOCOLETIVO
A realidade educacional brasileira em tempos de pandemia tomou características muito peculiares ao conjugar à crise sanitária um manejo catastrófico por parte do governo federal bem como uma realidade socioeconômica em agravo, criando os mais diversos percalços para que o ofício docente pudesse ser exercido. Professores e professoras precisaram rapidamente encontrar meios de atender aos estudantes dos mais diversos modos, através de estratégias que, apesar de remotas, não foram necessariamente por meios digitais.
Os professores, privados da territorialidade e temporalidade habituais, passaram por um grave abalo das referências que constituem o ofício, necessitando, muitas vezes, encontrar estratégias individuais para as questões educacionais que se apresentaram. Seu fazer, que antes guardava uma certa previsibilidade, se faz marcado por imprevistos e por equipamentos e ferramentas desconhecidas.
Diante de tal realidade, o cuidado do ofício docente se apresentou para além de uma necessidade, uma urgência. Então, a questão do cuidado do trabalhador pelo cuidado do ofício fez-se pista metodológica e perspectiva da pesquisa - e nosso acesso ao ofício, tanto para ter acesso a como ele tem sido exercido e quais questões ele tem produzido como para abrir a caixa de ferramentas que o contém e forjar novas práticas que o vivifiquem - se fez pelas narrativas do trabalho em meio a pandemia. Pelo mesmo instrumento - o contar a história do ofício - visamos cuidar deste, dando-lhe possibilidades de crescer e sobreviver frente às intempéries do tempo pandêmico.
O que pudemos acompanhar como pesquisadores foi o ofício docente em uma espécie de corda bamba, com professores e professoras reinventando práticas dentre as mais diversas infidelidades que o meio apresentou, mantendo uma certa tensão para acertar o passo através de um questionamento constante. Durante todo esse percurso as incertezas sobre “ser professor” e as certezas de que algumas práticas não são de professor fizeram e fazem parte das questões que perduram orientando as práticas. Distintamente de se debruçar em buscar uma essência do ser professor, pode-se visualizar uma dimensão ética, um olhar crítico sobre o próprio fazer e um certo tateamento dos limites e das excedências de limites para a constituição do ofício. Relançar essas questões e angústias muitas vezes vividas de forma solitária para o coletivo e fazer das narrativas individuais matéria de experiência coletiva, acionando forças desindividualizantes, tem se mostrado fundamental para vivenciar esse momento tão intenso e confuso de modo menos desestruturador, como também para apontar soluções frente à escassez de recursos, apoio, e mesmo de perspectivas para a continuidade do trabalho.
Assim, colocar a atividade docente na pandemia em debate, analisando seus meandros entre pares, tem se mostrado estratégia de cuidado importante, um cuidado direcionado, que tem em um fazer e por um fazer modo de ativação de saúde de quem trabalha em educação. Quando professoras e professores contam e reconhecem a história do ofício e seu fazer pode acessar uma dimensão coletiva de autorias e autorizações, desviando de uma perspectiva individualizante, tanto de seus esforços empreendidos quanto de seu sofrimento. Nisso, se produz um processo de cuidado e de saúde, bem como de ampliação das possibilidades de fazer enquanto professores que permite um melhor lidar não só com o contexto pandêmico, mas também com a renovação de seu próprio ofício potencializando, assim, a força política das pessoas que trabalham no campo da educação. Por força política entendemos o investimento do poder de ação coletiva em meio às problemáticas trazidas e evidenciadas pela própria pandemia.
Resumo
Texto completo
1. INTRODUÇÃO
2.CLÍNICASDO TRABALHO, OFÍCIO E NARRATIVIDADE
3.PELAS NARRATIVAS, UM PERCURSO METODOLÓGICO NO ÂMBITO DO TRABALHO DOCENTE
4.PANDEMIA E ABALO NAS ESTRATÉGIAS DE OFÍCIO DOCENTE
5.ALGUMAS CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES: NARRAR A EXPERIÊNCIADA DOCÊNCIA NA PANDEMIA DE COVID-19 E A AMPLIAÇÃO DO PODER DE AGIR NO E PELOCOLETIVO